domingo, 19 de setembro de 2021

Os letrados e a filosofia no Brasil, ou Notas para uma fundamentação da ideia de filosofia brasileira

Luiz Alberto Cerqueira


👉🏻 Texto originalmente publicado in: ARGUMENTOS – Revista de Filosofia/UFC.Fortaleza, ano 13, nº 25, Jan.-Jun. 2021, p. 82-101.

Internet: http://www.periodicos.ufc.br/argumentos/article/view/61495/162491


👉🏻 A ideia de filosofia brasileira pressupõe a recepção de ideias filosóficas modernas pelos letrados do século XIX. A correta interpretação do valor e do significado dos textos desses letrados implica uma consideração sobre o caráter humanístico da intervenção dos letrados na história do ensino filosófico ocidental.






Introdução


O símbolo da inteligência é a antena do caracol com sua ‘visão tateante’ (…) Em seus começos, a vida intelectual é infinitamente delicada (…) Os animais evoluídos em maior grau devem o que são à sua maior liberdade (…) Esse primeiro olhar tateante é fácil de dobrar (…) Tendo sido definitivamente afugentado da direção que queria tomar, o animal torna-se tímido e burro. (Adorno&Horkheimer, Sobre a Gênese da Burrice, in: Dialética do esclarecimento)



1. Mais de um século se passara desde a constituição do Império do Brasil, em 1824. Ao longo desse período se abolira não só o instituto da escravidão, legado pelo sistema colonial português, como também a monarquia fundada na esteira da transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro. E por efeito desse processo de descolonização, ainda que lento e gradativo, o país evoluiu para a experiência da vida republicana moderna, uma vez que foi capaz de eleger seu primeiro governante pelo voto direto [1]. Mas essa modernização no âmbito do poder, embora suficiente para dar azo à consciência de si como povo efetivamente soberano na geopolítica regional, não fora o bastante para desentravar, do ponto de vista de uma evolução mental e emocional, a conquista da independência no âmbito da cultura. E como de fato se reconheceu, desde a primeira História da Filosofia no Brasil (1878), que no processo de emancipação cultural a recepção de ideias da fonte estrangeira fora conveniente [2], identificou-se esse entrave da seguinte maneira: a causa principal dessa dependência da fonte estrangeira na esfera científica e filosófica devia-se à inexistência de uma cultura universitária nacional; e por esta razão se justificaria o empreendimento de uma educação nova em substituição daquela até então marcada, desde a origem colonial, pela formação de letrados [3].


Nota 1: O Art. 1º da Constituição de 1824 definiu a soberania nacional nos termos de uma “nação livre” com base na “associação política de todos os cidadãos brasileiros”. Mas, de dentro das sombras da escravidão, como forma de governo, ao invés de república, na qual a coisa pública é, por direito, coisa do povo — “povo” no sentido originário e extensivo de população/populus, desde a definição “res publica, res populi” em Cícero —, pareceu natural a opção por uma monarquia hereditária que, embora constitucional e representativa, girava em torno do poder soberano de imperium, o poder moderador, cuja concepção nos remete àquela de significação política inferior, na Política de Aristóteles, segundo a qual a autoridade do monarca é inviolável, de maneira que a sua pessoa, uma vez revestida de uma aura sagrada, não é igual à dos cidadãos que ele representa, difere deles por natureza. Cf. Art. 99: “A pessoa do Imperador é inviolável, e sagrada: Ele não está sujeito a responsabilidade alguma”. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm. Acesso: 20/02/2024.


Nota 2: Sílvio Romero, A filosofia no Brasil (Parte IV, §100 a §102), vai direto ao ponto: “É uma verdade afirmar que não temos tradições intelectuais no rigoroso sentido (…) o espírito público não está ainda criado e muito menos o espírito científico. A leitura de um escritor estrangeiro, a predileção por um livro de fora vem decidir a natureza das opiniões de um autor entre nós. As ideias dos filósofos [brasileiros], que vou estudando, não descendem umas das dos outros pela força lógica dos acontecimentos (…) É que a fonte onde nutriam suas ideias é extranacional. Não é um prejuízo; antes equivale a uma vantagem”. Disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2011/07/nota-inicial-o-titulo-deste-pequeno.html


Nota 3: “Onde se tem de procurar a causa principal desse estado antes de inorganização do que de desorganização do aparelho escolar, é (…) na falta de espírito filosófico e científico (…) esse empirismo grosseiro (…) tem as suas origens na ausência total de uma cultura universitária e na formação meramente literária de nossa cultura. Nunca chegamos a possuir uma ‘cultura própria’…” (Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, 1932). Disponível em: http://download.inep.gov.br/download/70Anos/Manifesto_dos_Pioneiros_Educacao_Nova.pdf. Acesso: 20/02/2024.


2. Entretanto, foram letrados do século XIX que denunciaram o atraso no ensino filosófico e científico no Brasil, ao assumirem como teses do romantismo os princípios da relatividade do conhecimento e da historicidade das ideias [4]; e por essa via foram eles que levaram para o campo da educação a ideia de modernização do ensino público [5]. Desse ponto de vista, e a despeito de terem sido deslustrados como representantes de uma cultura não universitária, e por isso mesmo relegados ao limbo da história da filosofia no Brasil como meros “pensadores” ou “filosofantes”, isto é, “diletantes das ideias gerais” [6], o papel desses letrados na recepção e no uso de ideias filosóficas modernas consistiu em assinalar a necessidade de uma profunda reforma da educação, a começar pela consciência de si como sujeito de conhecimento dentro das condições e limites do princípio da relatividade do conhecimento. Importa insistir nesse ponto. Veja-se, por exemplo, Gonçalves de Magalhães, em seus Fatos do espírito humano, obra que Tobias Barreto considerou, em 1869, como sendo toda a biblioteca filosófica do Brasil [7]:


Custa-nos muito no meio, ou no fim da vida, renovar as nossas ideias, como o mudar de linguagem, e reformar os nossos costumes. Assim, não há verdade em ciência alguma, não há fato novo, achado pelo trabalho assíduo de alguns espíritos, que não fosse, e não seja combatido por mil juízos antecipados (…) negamos hoje o que afirmamos ontem, damos agora como causa o que antes reconhecemos ser efeito, ou desacoroçoados duvidamos de tudo; o que também é um erro, porque infalivelmente alguma coisa é verdade sem a menor dúvida para o espírito humano, a começar pela sua própria existência. [8]


Nota 4: No mesmo ano e lugar do lançamento de seus Suspiros poéticos e saudades (Paris, 1836), quando então vivia a experiência do romantismo francês, Gonçalves de Magalhães afirma no Ensaio sobre a História da Literatura do Brasil, Parte III, §28 e §32: “Não se pode lisonjear muito o Brasil de dever a Portugal sua primeira educação (…) Se compararmos o atual estado da civilização do Brasil com o das anteriores épocas, tão notável diferença encontraremos como se entre o fim do século passado e o nosso tempo presente ao menos um século mediara. Devido é isso a causas que ninguém ignora. Com a expiração do domínio português muito se desenvolveram as ideias”. Disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2012/05/discurso-sobre-historia-da-literatura.html


Nota 5: Tobias Barreto foi o primeiro a defender o ideal científico do saber como base da educação formal no Brasil, cujo ensino filosófico sob o aristotelismo da Ratio Studiorum, desde o último quartel do século XVI, caracterizou-se pela subordinação à Teologia. Tal subordinação ainda se fazia presente na publicação das Lições de filosofia elementar, racional e moral (Recife, 1871; de autoria do professor secundário José Soriano de Souza, para uso dos candidatos ao curso de Ciências Jurídicas e Sociais, conforme o Art. 8º da Lei de 11/08/1827, disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim.-11-08-1827.htm). Segundo Tobias Barreto: “O que deturpa essencialmente o volume do ilustre doutor é a falta absoluta de espírito científico (…) O que primeiro nos ocorre, quando lemos uma obra de filosofia, é saber se o seu autor compenetrou-se bem do estado da ciência e deu às questões vigentes alguma solução. Por este lado, quem abrir o livro do Dr. Souza, pode estar certo de que nada encontrará. Melhor será que não o leia, porque ele não satisfaz àquela exigência” (BARRETO, O Atraso da Filosofia entre Nós, 1872, §43 e §48. Disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2010/06/o-atraso-da-filosofia-entre-nos.html


Nota 6: “No Brasil, na época romântica, apareceu um filósofo de medíocre valor, o visconde de Araguaia [D. J. Gonçalves de Magalhães], o autor dos Fatos do espírito humano (…) Esse era um poeta e foi, entre nós, o fundador da escola romântica (…) Creio que ninguém lê, hoje, as suas lucubrações psicológicas e metafísicas (…) Não temos, pois, propriamente nenhum filósofo. Não falo aqui, já se entende, dos pensadores, isto é, dos espíritos filosofantes, críticos, sectários ou discípulos de escolas várias, positivistas, spenceristas, materialistas e quejandos de outras matizes. Sem possuirmos um só filósofo, tínhamos, e temos ainda (…) o diletante das ideias gerais, o pensador (…) O pensador é, na literatura da nossa língua, um tipo de alta categoria intelectual. E, sem nenhuma intenção de ridículo, é o filósofo barato.” (RIBEIRO, A Filosofia no Brasil, 1917, §3 e §4; disponível em: https://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2014/10/a-filosofia-no-brasil-1917.html)


Nota 7: Cf. Tobias Barreto, Fatos do Espírito Humano (resenha da obra de Magalhães), §1. Disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2013/02/fatos-do-espirito-humano.html.


Nota 8: Cf. Gonçalves de Magalhães, Fatos do espírito humano, Cap. XV, §2; disponível em: https://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2008/06/fatos-do-esprito-humano-cap-xv_20.html


3. Inteiramente de acordo quanto à relatividade do conhecimento como princípio, mas posicionando-se contrariamente a Magalhães quanto ao seu modo formal de apresentação, quase condescendente, do nosso descompasso emocional e mental em relação à cultura moderna, Tobias Barreto começou a se espelhar nos autores alemães [9]. Assim, depois de ler a Philosophie des Unbewussten (Filosofia do inconsciente, de1869) do jovem Eduard von Hartmann, a comparação com o estágio do nosso desenvolvimento filosófico pareceu-lhe chocante: “O Brasil padece de uma espécie de prisão de cérebro (...) É preciso sujeitar-se à dolorosa operação da crítica de si mesmo, do despego, do desdém, e até do asco de si mesmo, a fim de conseguir uma cura radical” [10]. Também assim com Sílvio Romero, depois que se espelhou em Tobias Barreto, ainda na Escola de Direito do Recife:


Pelo que me toca, há sido a minha vida intelectual uma constante e dolorosa luta para arredar da mente o que nela foi depositado pelo ensino secundário e superior que me inocularam, e substituir tão frágeis e comprometedoras noções por dados científicos. [11]


Nota 9: Leitor de Kant nas edições alemãs, Tobias Barreto aderiu à concepção kantiana de uma “revolução copernicana" no âmbito filosófico (Crítica da razão pura, BXXII), e assim se posicionou: “A doutrina da relatividade só tem senso racional, nas duas seguintes hipóteses: 1.ª, que os objetos cognoscíveis são determinados pela própria natureza do sujeito cognoscente; 2.ª, que eles, justamente por causa desta sua relatividade, não representam a verdadeira, absoluta essência da realidade” (BARRETO, Relatividade de Todo Conhecimento, §23; disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2008/06/relatividade-de-todo-conhecimento.html). Mas alguns autores alemães contemporâneos por ele estudados e citados na língua original foram depois esquecidos. Este fato valeu posteriormente como prova de um germanismo pernóstico. Dentre esses autores alemães, e.g., Du Bois-Reymond (1818-1896) é atualmente redescoberto como o mais importante intelectual do século XIX na área da neurociência (ver: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1737619/); quanto a Ludwig Noiré (1829-1889), cuja recepção por Tobias Barreto chegou a ser ridicularizada com base em suposta irrelevância, é considerado atualmente um clássico da história e da filosofia das ciências da linguagem (ver: https://hiphilangsci.net/2016/09/28/ludwig-noire-and-the-debate-on-language-origins-in-the-19th-century/). Acesso: 20/02/2024.


Nota 10: Cf. Tobias Barreto, Sobre a Filosofia do Inconsciente, §3. Disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2013/02/sobre-filosofia-do-insconsciente.html


Nota 11: Cf. Sílvio Romero, A filosofia no Brasil, Conclusão, §568. Disponível em: https://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2011/07/nota-inicial-o-titulo-deste-pequeno.html


4. Ressalte-se, portanto: foi no âmbito da cultura das letras, para além das obras de caráter propriamente estético ou narrativo — a exemplo do Compêndio narrativo do peregrino da América, de Nuno Marques Pereira —, incluindo-se aí tanto a parenética quanto o discurso filosófico como gêneros literários, que autores do século XIX como Frei Francisco do Monte Alverne, Gonçalves de Magalhães, Nísia Floresta — avis rara feminista [12] —, Tobias Barreto e Sílvio Romero se tornaram conscientes da dependência da fonte estrangeira como uma situação real [13]. E como desdobramento dessa situação, o fator de caracterização da elite, enquanto o grupo de cidadãos mais esclarecidos acerca da necessidade de modernização das instituições de cultura brasileira, como a instrução pública, passou a ser o conhecimento de línguas estrangeiras [14]. E por esta via não só Gonçalves de Magalhães promoveu a reforma da literatura mediante a recepção do romantismo religioso na fonte francesa, como depois foi a vez de Tobias Barreto fazer a crítica desse romantismo no Brasil, ao destacar no romance de outras fontes a vivência real, e não idealizada [15], de problemas universais [16]. Mais do que isso, apoiado no darwinismo social alemão de Julius Fröbel, um dos primeiros a introduzir o conceito de evolução no discurso político e social, Tobias Barreto defendeu a ideia de que o “conceito da vida privada não pode surgir senão por meio da consciência de uma vida pública” [17]. Desse modo, ele promoveu a crítica da tradição filosófica vigente no Brasil desde o período colonial, quando a consciência de si como sendo uma vontade livre do determinismo natural, e portanto um ente moral, implicava, sob o aristotelismo da Ratio Studiorum, a ideia de separação entre mente e corpo, com base na concepção aristotélica de superioridade da forma sobre a matéria [18]. Depois da independência e da constituição política do Estado brasileiro, o modo de apresentação em separado da consciência de si como ente moral, reduzida ao estado do isolamento absoluto de átomos inorgânicos, pareceu a Tobias Barreto inteiramente incompatível com o moderno conceito de vida privada condicionada pelo direito [19]. Se não, vejamos:


Padre Vieira — neste mundo racional do homem, o primeiro móbil de todas as nossas ações é o conhecimento de nós mesmos (…) Qual será logo no homem o limpo conhecimento de si mesmo? Digo que é conhecer e persuadir-se cada um, que ele é a sua alma (…) o homem natural compõe-se de alma e corpo; o homem moral constitui-se ou consiste só na alma. De maneira que, para formar o homem natural, há-se de unir a alma ao corpo; e para formar ou reformar o homem moral, há-se de separar a alma do corpo (…) porque, livre a alma dos embaraços e dependências do corpo, obra com outras espécies, com outra luz, com outra liberdade (…) se a morte há de fazer por força esta separação, por que a não faremos nós por vontade? Por que não fará a razão desde logo, o que a morte há de fazer depois? Oh que vida! Oh que obras seriam as nossas tão outras do que são! [20]


Tobias Barreto — Quer o homem seja, conforme a velha definição, um animal racional, um animal que pensa, quer se chame um animal que faz trocas, ou um animal que reza (…) seja como for, o certo é que cada uma dessas definições indica alguma coisa de contrário e superior à pura animalidade (…) nada disto exclui, por si só, a ferocidade original. Quem pois definisse o homem ‘um animal que prende-se, que doma-se a si mesmo’ daria por certo a melhor definição (…) O indivíduo prendendo-se a si mesmo — é o puro domínio da moral. Mas o homem não é só indivíduo, é ainda, e principalmente, sociedade. Releva, portanto, que também todos se prendam vis-à-vis de todos, cada um a cada um, e este é então o domínio do direito (…) um rebanho de homens não é menos indigno do nome de sociedade do que um rebanho de animais. [21]


Nota 12: Considere-se, de Nísia Floresta Brasileira Augusta, o seu Opúsculo humanitário, XXIV: “Sabe-se que nenhuma academia nem escola regular possuía a nossa terra até os princípios do presente século, onde os seus filhos, explorando com vantagem as ciências a que se dedicavam, pudessem obter um título que os distinguissem no mundo científico e literário. Não somente para esse fim como para terem conhecimentos exatos até dos estudos preliminares, eram eles obrigados a ir longínqua distância à metrópole. Se era isso uma medida política do seu governo, a nós não compete ventilá-lo. Queremos somente concluir que, nesse estado, nenhum recurso podia o Brasil oferecer à mulher que desejasse cultivar a sua inteligência” (AUGUSTA, 1989 [1853], p. 56). Disponível em: http://livros01.livrosgratis.com.br/me002106.pdf. Acesso: 20/02/2024.


Nota 13: A começar pelo testemunho de Frei Francisco do Monte Alverne (1784-1858): “A instrução pública nessa época era muito circunscrita (…) era à custa de esforços inauditos, que os brasileiros podiam distinguir-se. Restava um meio fácil de promover o nosso adiantamento, o estudo da língua francesa: porém ainda em 1807 não havia no Rio de Janeiro um professor público desta língua. Foi para mim um triunfo (…) aprender sem mestre, e sem o socorro da gramática, este idioma tão rico de escritores eminentes (…) o jovem orador brasileiro era condenado a ficar na obscuridade (…) ou procurar na leitura dos pregadores franceses as inspirações, de que carecia para ilustrar o seu espírito, e abrilhantar seus discursos” (Monte Alverne, Obras oratórias, Discurso Preliminar, 1891 [1852], §8). Disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2010/12/discurso-preliminar-obras-oratorias.html


Nota 14: Com o propósito de alargar a consciência de cidadania no espírito feminino, Nísia Floresta não só fundou o Colégio Augusto (1838) e introduziu no currículo as disciplinas de História e Geografia, além de Português e Matemática, como também preocupou-se em situar a mulher no contexto cultural brasileiro da recepção de ideias modernas mediante o ensino criterioso das disciplinas de Francês, Inglês e Italiano.


Nota 15: Em sua recepção da ideia de relatividade do conhecimento, tanto Gonçalves de Magalhães como José de Alencar descambaram para o relativismo quando idealizaram o índio brasileiro, sobretudo o segundo, que deu origem ao romance indianista. Enquanto Conselheiro/Ministro da Justiça do imperador Pedro II, José de Alencar estabeleceu uma relação entre ideal e real, entre uso teórico e prático da razão, como sendo retas paralelas, que só se encontram no infinito: “A distância entre o político e o filósofo (…) é imensa, não obstante se acharem reunidas em uma só individualidade essas duas faces da razão. Há reformas que o espírito prevê em um futuro remoto, ao passo, que no presente combate como altamente prejudiciais. Tudo tem seu tempo” (José de Alencar, O sistema representativo, 1868, p. 9). Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/view/?45000018540&bbm/4656#page/4/mode/2up. Acesso: 20/02/2024.


Nota 16: Cf. Tobias Barreto, O Romance no Brasil: “Donde vem pois que a vida brasileira, quer pelo lado psicológico e moral, quer pelo lado político, religioso, estético, social e econômico, não pôde ainda vazar-se nos grandes moldes do romance moderno? (…) Não são somente as nossas próprias lutas e esforços, recordações e afetos, que temos ocasião de achar na bagagem do romance. Aí também se encontra ciência, filosofia, arte, política e religião; aí nos relacionamos com todas as questões do tempo, compreendemos o seu alcance, e sentimos a urgência de uma solução (…) Um exemplo, entre milhares: Walter Scott, em alguns dos seus poemas, dá-nos a conhecer o mecanismo do self government muito melhor do que os historiadores do direito público inglês” (BARRETO, Tobias. Crítica de literatura e arte. In: Obras completas, vol. 3. Rio de Janeiro: INL/Record, 1990, p. 64).


Nota 17: Cf. Tobias Barreto, Glosas Heterodoxas a Um dos Motes do Dia, ou Variações Antissociológicas, Parte VIII, §188. Disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2012/07/glosas-heterodoxas-um-dos-motes-do-dia_26.html


Nota 18: Trata-se da doutrina segundo a qual, em relação aos organismos vivos, que potencialmente contêm em si mesmos o princípio de movimento e mudança, o corpo humano, desde o feto, é gradativamente enformado (sic) nas instâncias vegetativa, sensitiva e intelectiva (ARISTÓTELES, Da alma I, 1). Em sua Política, ele afirma: “Em primeiro lugar, um animal consta de alma e corpo, dos quais o primeiro é por natureza o que manda e o último o que é mandado (…) Ao estudar o animal humano, temos de considerar um homem que se encontre nas melhores condições possíveis, quanto ao corpo e quanto à alma, e nele aparecerá o princípio afirmado (…) A alma governa o corpo com a autoridade de senhor, enquanto a inteligência exerce uma autoridade política ou régia sobre o apetite. Nestes casos é evidente que é não só natural como também benéfico para o corpo ser governado pela alma, tal como a parte afetiva pelo intelecto” (ARISTÓTELES, Política I, cap. V, 1254b).


Nota 19: Ao asseverar que “pela palavra direito nada mais se quer dizer do que aquela liberdade que todo homem possui para utilizar suas faculdades naturais em conformidade com a razão reta”, Hobbes não só reconhece no consenso jurídico a qualidade da vida privada em seu grau mais elevado, como também lhe atribui um caráter universal: a heteronomia da lei é suscitada como antítese necessária da autonomia absoluta da vontade livre, de modo a garantir uma medida de igualdade entre os cidadãos. Cf. Hobbes, De cive or The citizen I, 1, 7. Disponível em: https://archive.org/details/deciveorcitizen00inhobb/page/27/mode/1up. Acesso: 20/02/2024.


Nota 20: Cf. Padre Antônio Vieira, As Cinco Pedras da Funda de Davi, discurso I, §1, §7, §14 e §17 (VIEIRA, 2001 [1673], vol. II, p. 536-537). Disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2008/07/antonio-vieira-1608-1697-o-que-conduz.html


Nota 21: Cf. Tobias Barreto, Glosas Heterodoxas a Um dos Motes do Dia, ou Variações Antissociológicas, Partes V e VIII, §88-§91 e §189. Disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2012/07/glosas-heterodoxas-um-dos-motes-do-dia_26.html


5. Em face dessas evidências, entendemos que a recepção e uso de ideias filosóficas pelos nossos letrados, com a finalidade explícita de modernizar a própria formação, é o marco zero do processo de descolonização e emancipação do espírito brasileiro. Mais do que isso, importa ressaltar que a visão crítica desse processo, gerada no bojo do seu desenvolvimento gradativo, envolve como problema a interpretação de sentido tanto da relatividade do conhecimento quanto da historicidade das ideias, que se pode representar assim: não basta indagar se o conhecimento das coisas depende da constituição de nosso espírito, a propósito de Gonçalves de Magalhães; é preciso verificar se, inversamente, o conhecimento do eu e da consciência não sofre a influência das coisas, como entendeu Tobias Barreto.


6. Do ponto de vista desse processo e do seu desenvolvimento gradativo, temos aí o momento originário da história da filosofia brasileira como sendo a vivência filosófica de um povo.


7. Digo “povo” referindo-me, em primeira instância, à condição natural desses letrados, posto que por nascimento pertenciam ao segmento populacional dos indivíduos que, pela Constituição Política do Império, receberam o título de Cidadãos Brasileiros e passaram a formar a “Nação livre” [22]; entretanto, para além de sua condição natural e em última instância, refiro-me à consciência da própria natureza de cidadão como sendo a condição sine qua non em virtude da qual a ação do indivíduo se reveste de significação ético-social [23], na medida em que visa o bem comum. Nesse sentido, vale considerarmos o caso exemplar da obra de Nísia Floresta: o fato de não ser juridicamente capacitada para exercer a titularidade dos direitos de cidadania, por ser mulher [24], certamente foi motivo e fundamento do seu trabalho intelectual, particularmente para a execução do seu projeto pedagógico:


Não nos embala a vã pretensão de operar uma reforma no espírito de nosso país. Por demais sabemos que muitos anos, séculos talvez, serão precisos para desarraigar herdados preconceitos a fim de que uma tal metamorfose se opere. Esperamos somente que os zelosos operários do grande edifício da civilização em nossa terra atentem para os exemplos que a História apresenta do quanto é essencial aos povos, para firmarem a sua verdadeira felicidade, o associarem a mulher a esse importante trabalho. A esperança de que, nas gerações futuras do Brasil, ela assumir a posição que lhe compete nos pode somente consolar de sua sorte presente. [25]


Nota 22: Considerando a Constituição Política do Império (ver 1824), e tendo como premissas que (i) a vida social brasileira se constituiu de forma sustentável com base na relação entre senhores e escravos, e que (ii) pela sua origem africana e introdução no país em grandes quantidades, a presença histórica dos escravos no contexto social foi considerada como um segmento populacional diferenciado (quanto aos índios, uma presença descontextualizada pelo colonizador); então podemos explicar razoavelmente por que no texto constitucional — inclusive na Lei do Segundo Reinado (ver 1841) — não há referência a povo, senão a povos, de maneira que no Art. 1º e nos cinco itens do Art. 6º distinguiu-se claramente o segmento populacional dos indivíduos que passaram a formar uma “Nação livre”; e, por omissão deliberada, tornou-se invisível como ente de razão o segmento populacional dos escravos, que continuaram sendo como que uma “nação sem liberdade”.


Nota 23: De acordo com Tobias Barreto, “é mister que o cidadão exprima o homem, como o Estado deve exprimir o povo; é mister que homem faça o cidadão, como o povo deve fazer o Estado”; in: Os Homens e Os Princípios. Disponível em: https://archive.org/details/TobiasBarretoObrasCompletas06EstudosDeDireitoVol.1/Tobias%20Barreto%20-%20Varios%20Escriptos/page/n100/mode/1up?view=theater (p. 51). Acesso: 20/02/2024.


Nota 24: Cf. Tobias Barreto, Menores e Loucos em Direito Criminal (Estudo sobre o art. 10 do Código Criminal do Império), Parte IV, 1884: “Quando se considera que as leis encurtam o diâmetro do círculo de atividade jurídica das mulheres (…) que expressamente assinalam-nas como fracas e incapazes de consultar os seus próprios interesses, e (…) as mantém sob uma tutela permanente (…) em suma, quando se atende para a distinção sexual, tão claramente acentuada nas relações jurídico-civis, é natural pressupor que se tem reconhecido uma diferença fundada na organização física e psíquica dos mesmos sexos. Mas isto posto, é também o cúmulo da inconsequência e da injustiça não reconhecer igual diferença no domínio jurídico-penal, quando se trata de imputação e de crime”. Disponível em: http://www.stf.jus.br/bibliotecadigital/DominioPublico/146962/pdf/146962.pdf. Acesso: 20/02/2024.


Nota 25: Cf. Nísia Floresta, Opúsculo humanitário, XVIII, p. 45. Disponível em: http://livros01.livrosgratis.com.br/me002106.pdf. Acesso: 20/02/2024.


8. Ademais, podemos dizer filosofia “brasileira” ou filosofia “no Brasil”, tanto faz, porque nos parece suficientemente demonstrado que, dentro das condições e limites de nossa cultura literária no século XIX, realmente houve aqui uma manifestação digna de atenção quanto ao modo de recepção do moderno princípio de relatividade do saber. Ainda que pareça pouco, para nós esse pouco é tudo.


9. Mas ainda cabe aqui uma consideração.


10. Para a formação do espírito público, afirma Cícero em sua crítica de uma tese socrática, não bastam disciplinas referidas ao ato de conhecer, senão também aquelas referidas à arte de convencer, como a retórica, a poética e a eloquência [26]. No Pro Archia, ele se refere à arte literária como expressão da dignidade do homem [27]. Este foco nas letras, não só para se atentar na correlação entre o entendimento e a linguagem, mas também para assinalar a necessidade de se fazer bom uso da linguagem, se renova nos letrados humanistas, ditos “modernos” (recentiores) exatamente porque eles se posicionaram contra os “antigos”, aqueles que ainda se orientavam em conformidade à tese sustentada desde a Antiguidade grega, que resumidamente se expõe assim: uma vez que o grau contemplativo ou teórico no conhecimento das coisas é superior e melhor do que a sua percepção empírica, por isso mesmo, tendo por base o senso moral quanto ao próprio esforço consciente de abstração no uso que fazemos da razão natural em termos de arte ou método, se pode compreender perfeitamente por que todo homem é capaz de ser bastante eloquente sobre aquilo que conhece. Em princípio, tal referência à arte de falar bem nada tem a ver com dissimulação ou pedantismo. Contra Protágoras e Górgias, para os quais a verdadeira sabedoria consiste no uso da eloquência como arte da persuasão, Sócrates propõe a universalidade do saber como condição para se exercer autoridade. Em outras palavras: distinguindo-se a opinião como o primeiro grau na ordem do conhecimento, tratava-se de estabelecer em grau superior se aquilo que é concebido por um pode ser igualmente concebido por muitos. E uma vez esclarecido que não podemos representar univocamente por meio dos sentidos do corpo, senão por meio de um sentido abstrato — em virtude do qual deixamos de lado as sensações da visão, da audição, do tato, etc., e as emoções de que se revestem tais sensações nas circunstâncias de nossas percepções —, então a função simbólica da linguagem passa a girar em torno à comunicação desse sentido essencial que se concebe por abstração — o objeto de conhecimento —, do qual se diz “universal” por ser indiferente a muitos enquanto se concebe. Desse modo, em função do sentido essencial contido em formulações teóricas e práticas, a virtude do saber defendida pelos “antigos” consolidou-se historicamente de maneira perversa, falseando-se o senso moral no uso teórico da razão, porque em verdade a indiferença em virtude da qual se atribui universalidade a conceitos e consensos não tem a ver com o ato de abstrair, senão com a vontade livre que se experimenta no querer ou consentir aquilo que diz uma regra ou norma, independentemente de qualquer força externa que nos obrigue a tanto.


Nota 26: Cf. Cícero, De oratore, I.63. Disponível em: https://archive.org/details/cicerodeoratore01ciceuoft/page/46/mode/1up. Acesso: 20/02/2024.


Nota 27: Cf. Cícero, Pro Archia, II.3. Disponível em: https://archive.org/details/proarchiabro00ciceuoft/page/18/mode/1up. Acesso: 20/02/2024.


11. Recorrendo-se à consciência de si dentro do processo de emancipação do espírito brasileiro no século XIX, não temos dúvida de que o letrado brasileiro faz jus ao nosso propósito de situá-lo em relação ao papel histórico do humanista, quando este afirma: “A filosofia me ensinou a depender menos dos juízos dos outros do que da minha própria consciência” [28]. E desse modo podemos resgatar-lhe a dignidade filosofante pela audácia de querer conceder cidadania brasileira à filosofia; até porque, se é verdade que ninguém pode discorrer sobre o que não conhece sem dissimular, também é verdade que ninguém pode convencer sobre o que conhece perfeitamente se ignora como realçar o seu discurso com figuras de linguagem.


Nota 28: Cf. Pico della Mirandola, De hominis dignitate oratio, 2008 [1486], p. 240: “Docuit me ipsa philosophia a propria potius conscientia quam ab externis pendere iudiciis”. Disponível em: https://archive.org/details/pico-della-mirandola-giovanni.-discurso-sobre-la-dignidad-del-hombre-ocr-2008/page/240/mode/1up. Acesso: 20/02/2024.


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12. A concepção renascentista dos Studia Humanitatis, reunindo às disciplinas literárias (Gramática Latina, Grego, Retórica e Poesia) a Filosofia — sendo esta referida especialmente ao estudo de textos aristotélicos (Ética a Nicômaco e Política) —, envolve como problema central a questão sobre o valor das palavras, então apresentada por Leonardo Bruni a propósito de sua crítica do método de interpretação empregado pelos tradutores escolásticos de Aristóteles, pois tornara-se evidente, no âmbito do aristotelismo escolástico, a incorporação do léxico aristotélico transliterado do grego ao contexto latino da Escolástica [29].


Nota 29: Para melhor compreensão do problema, ver José Antônio Martins, Sobre as Origens do Vocabulário Político Medieval, quando se refere, por exemplo, à tradução de koinonia politiké por communitas ou communicatio politica: “por que nem Grosseteste, nem Moerbeke traduziram koinonia politiké por civitas, societas ou respublica? Para recordar, logo na abertura da Política, Aristóteles define polis como uma koinonia politiké, como a associação humana mais excelente; é essa associação que formará a polis, que nós costumeiramente traduzimos por cidade. Ora, por que não optaram por traduzir a expressão que será a definição de cidade por civitas, que é um termo latino consagrado e de largo uso, como o fará Bruni, no século XV?”. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/trans/v34n3/v34n3a06.pdf. Acesso: 20/02/2024.


13. Depois de levar a cabo a tradução latina da Ética a Nicômaco de Aristóteles, Leonardo Bruni observou que não lhe fora suficiente o conhecimento da gramática e da nomenclatura do Grego e do Latim, pois tinha encontrado tantas figuras de linguagem no texto original ao ponto de convencer-se de que, se o tradutor não for um letrado perito, isto é, experiente em muitas e variadas leituras de todo tipo de escritores em ambas as línguas, facilmente se enganará e entenderá mal o que se há de traduzir. Em sua obra sobre a interpretação correta, Bruni ressalta a necessidade de se conhecer o valor e a natureza das palavras (uim ac naturam uerborum subtiliter norit) relativamente à intenção de que se reveste o ato de significar, isto é, representar com uso de palavras o sentido de algo a uma potência cognoscente, para efetuar aquilo que se espera de volta também com uso palavras (cum uerbum uerbo reddendum fuerit) [30].


Nota 30: Cf. Leonardo Bruni, De interpretatione recta, principalmente Cap. I. Disponível em: https://la.wikisource.org/wiki/De_interpretatione_recta. Acesso: 20/02/2024.


14. Ora, uma vez que todo conhecimento se comunica discorrendo, tal consideração humanística do ato de significar, ao suscitar o empenho da vontade na intenção de estar fazendo alguma coisa mediante o uso instrumental de outra coisa, transformou-se em fator de reconhecimento do mérito e da autoridade no exercício das artes liberais. De maneira que, tendo-se como pressuposto a necessidade de aperfeiçoar a qualidade do cidadão, o Curso de Artes (Liberalium Artium Studiis) passou a ocupar uma posição média estratégica no sistema gradativo da educação formal: depois dos estudos que constituíam a formação básica, ou “inferior”, porém antes de se ultimar a transformação do indivíduo pelo ofício enquanto representante de pelo menos uma das áreas de conhecimento mais relevantes naquele estágio da vida civil — a saber: Teologia, Direito, Medicina, Artes —, sendo tais estudos específicos distribuídos em colégios ou faculdades, não necessariamente na mesma cidade, formando uma corporação jurídica de professores e alunos sem fronteiras, isto é, uma universidade.


15. No contexto do aristotelismo em que se pauta o desenvolvimento da cultura europeia medieval, a recepção do ideário humanístico em Portugal sobressai na fundação, por D. João III, em 1548, da Real Escola Pública das Artes Liberais (Regium liberalium artium Gymnasium), instituição caracterizada pela presença de mestres humanistas estrangeiros, e que, depois de confiada à academia dos jesuítas, em 1555, registrou na edição dos seus Comentários a obras de Aristóteles a designação de “colégio conimbricense” (Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis Jesu in libros…) [31]. E talvez porque tenha sido concebido em nome de uma renovação da fidelidade a Aristóteles em pleno século XVI, o aristotelismo desse colégio das Artes foi associado de maneira precipitada à ideia de uma “segunda Escolástica”. Mas os humanistas estrangeiros contratados, sendo a maioria do então renomado Collège de Guyenne [32], em verdade promoveram a reforma do Curso de Artes junto à Universidade de Coimbra em conformidade com o método de estudo consolidado em colégios das universidades de Paris e de Oxford: a exegese de texto. Uma evidência desse benefício legado à filosofia universitária em Portugal se verifica imediatamente, não só no método de estudo dos jesuítas [33], nos Comentários “Conimbricenses", que assim designados marcaram época no ensino filosófico ocidental, mas sobretudo em Pedro da Fonseca: ele não só identificou no próprio meio acadêmico em que se formara um aristotelismo servil, porque embora todos quisessem ser considerados aristotélicos, pouquíssimos liam Aristóteles, julgando que a doutrina aristotélica se encontrava mais facilmente nas súmulas do que nos textos do próprio autor [34], como também traduziu e comentou a Metafísica de Aristóteles [35], sendo que, para tanto, imbuído do espírito filosofante dos letrados “modernos”, ele dedicou parte significativa dos trabalhos consultando códices gregos e latinos, no intuito de estabelecer um texto aristotélico que fora tão adulterado por interpolações.


Nota 31: Para mais subsídios, consultar Conimbricenses, disponível em: https://www.conimbricenses.org/resources/. Acesso: 20/02/2024.


Nota 32: O humanista português André de Gouveia, que fora reitor do colégio das Artes da Universidade de Paris, e depois contratado para dirigir e introduzir o ideário humanístico no colégio das Artes de Guyenne, foi o organizador desse empreendimento em Portugal.


Nota 33: Cf. Ratio Studiorum, Regras do Professor de Filosofia, 12-13: “Ponha toda a diligência em interpretar bem o texto (...) e não dedique menos esforço à interpretação do que às próprias questões. Aos seus alunos deve persuadir que será incompleta e mutilada a filosofia dos que ao estudo do texto não ligarem grande importância. Todas as vezes que deparar com textos célebres e muitas vezes citados nas disputas, examine-os cuidadosamente, conferindo entre si as interpretações mais notáveis a fim de que (...) do valor dos termos gregos, da comparação com outros textos, da autoridade dos intérpretes mais insignes e do peso das razões, se veja qual deve ser preferida”. Disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2013/02/ratio-studiorum.html


Nota 34: Cf. Pedro da Fonseca: “Adeo inops fuit politioris Literaturae superior aetas, ut cum omnes, qui Philosophiae studia consectabantur, Aristotelici haberi vellent, paucissimi essent, qui Aristotelem evolverent. Arbitrabantur enfim Aristotelicam doctrinam planius, et expeditius in summulis quibusdam, ac quaestionibus, quas diligentiorum industria perperat, quam in suo autore contineri”. (FONSECA, Institutionum dialecticarum libri octo [1564], Praefatio). Disponível em: https://www.conimbricenses.org/institutionum-dialecticarum/. Acesso: 20/02/2024.


Nota 35: Commentariorum Petri Fonsecae Lusitani, Doctoris Theologi Societatis Iesu, in libros Metaphysicorum Aristotelis Stagiritae (T. I, Roma, 1577; T. II, Roma, 1589; T. III, Evora, 1604; T. IV, Lyon, 1612), disponível em: https://www.conimbricenses.org/commentariorum-petri-fonsecae-societatis-iesu-in-libros-metaphysicorum-aristotelis/. Acesso: 20/02/2024.


16. Importa fazermos tais considerações, apontando para a recepção dos “modernos” em Portugal, porque a tradição do ensino filosófico instituído no Brasil através da Ratio Studiorum, ao longo de três séculos — desde 1572, quando foi oferecido o primeiro Curso de Artes na Bahia, até ao final da monarquia [36] —, supõe o aristotelismo do colégio jesuíta conimbricense. Ademais, ao chamarmos a atenção para um Pedro da Fonseca antenado, que nos revela o uso de ideias mais recentes da fonte estrangeira como fator de renovação do comprometimento moral com o próprio ofício, o que queremos é ressaltar o sentido universal, e portanto filosófico, de “moderno” e de seus correlatos “modernizar” e “modernização”.


Nota 36: Em claro exemplo de ideias fora do tempo e do lugar, a Lei de 11/08/1827, em seu Art. 8º (ver a nota 5 acima), ressuscita aquela antiga concepção intermédia do Curso de Artes em face dos estudos de grau superior, uma vez que, para matricular-se em uma das duas faculdades de ciências jurídicas e sociais então criadas no Brasil (Escola de Direito, em Olinda e São Paulo), o candidato devia apresentar certificado de aprovação em exame vestibular de Língua Francesa, Gramática Latina, Retórica, Filosofia Racional e Moral, e Geometria.


17. Essa modernização do Curso de Artes em Portugal estaria perfeitamente de acordo com o caráter político-social do desenvolvimento humano na doutrina aristotélica. Referimo-nos ao entendimento de que as artes e as ciências, mesmo enquanto expressões da ação livre pelo bem do próprio indivíduo, não alcançam seu grau de excelência fora da vida em sociedade [37]; além disso, Aristóteles afirmara que é próprio do indivíduo instruído buscar a exatidão no gênero de conhecimento [38]. Neste sentido, o gênero de conhecimento tem a ver com o desenvolvimento político-social da vida humana e com o surgimento natural do dever (officium) enquanto regra de ação, porque a natureza do dever consiste na atividade humana com base em algum grau de conhecimento. Cícero, por exemplo, em seu tratado sobre os deveres, De officiis, observa que “toda a glória da virtude está na atividade, que frequentemente pode ser interrompida, de maneira que assim se abrem muitas oportunidade de voltar ao estudo”, e que “mesmo sem um esforço consciente, a atividade da mente, que nunca descansa, pode manter-nos em busca de conhecimento” [39]. Desse ponto de vista, parece evidente que o conceito de dever como regra de ação envolve as noções de serviço e obrigação, sendo esta como um comprometimento moral com o modo do ser útil pelo bem que se recebe. Assim vemos Cícero recomendar que, em se tratando de fazer benefícios (beneficentia), importa avaliar com critério, quanto ao mérito e ao fim visado, a quem se confere o benefício (beneficium): devemos considerar-lhe, não só o caráter moral, mas também a utilidade da atividade regular — isto é, o seu ofício ou serviço — em relação ao nosso interesse [40].


Nota 37: Pois, “o bem certamente é desejável quando interessa a um único indivíduo, mas se reveste de um caráter mais belo e divino quando interessa a um povo e a cidades” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco I, 2, 1094b).


Nota 38: Cf. Aristóteles, Ética a Nicômaco I, 3, 1094b.


Nota 39: Cf. Cícero, De officiis 1.19.


Nota 40: Cf. Cícero, De officiis 1.45.


18. Tais concepções ganharam direito de cidade na cultura de língua portuguesa através dos membros da dinastia de Avis [41]. Destaque-se primeiramente que o Infante D. Pedro (1392-1449) traduziu o De officiis, de Cícero, alegando que além da teoria, de que tratam os livros de filosofia moral, a utilidade da obra faz com que mereça lugar de honra na biblioteca real [42]; mas a sua intenção era mostrar a relação entre esta obra de Cícero e o De beneficiis de Sêneca [43]. Ademais, em carta que enviou de Bruges (1426), o Infante D. Pedro, além de aconselhar o regente D. Duarte, seu irmão, que reformasse a universidade portuguesa criando novos colégios “à maneira dos de Oxford e de Paris, pois assim cresceriam os letrados e as ciências” [44], também esclareceu, quanto à noção de mérito na administração senhorial, que “nenhum senhor galardoa o servidor pelo cumprimento de sua própria vontade, mas por fazer aquilo que a seu serviço pertence” [45]. Posteriormente, no Livro Da virtuosa benfeitoria, e fazendo referências ao livro I da Política de Aristóteles, D. Pedro reafirma o sentido ético desse entendimento, ao explicar que, tendo em vista o bem comum, pela vontade enquanto móbil os homens “lhe obedecem, não como servos em constrangida sujeição, mas segundo homens livres em obediência desejosa” [46]. Também D. Duarte, no Cap. V do Leal conselheiro, fala da necessidade de cada um governar-se pelo uso da vontade à luz do entendimento, e recomenda especialmente essa virtude àqueles que, deixando a condição servil, passam à condição de servidores na medida em que já esperam retribuição por seu bom serviço [47].


Nota 41: Refiro-me aos conhecidos textos dos príncipes da Casa de Avis, no século XV, nos quais se verifica o uso de ideias suscitadas pelos letrados humanistas: Livro Da montaria, do rei D. João; Leal conselheiro e Livro Da ensinança de bem cavalgar toda sela, do rei D. Duarte; Livro Da virtuosa benfeitoria, do Infante D. Pedro; Livro Dos conselhos de El-Rei D. Duarte (livro da Cartuxa de Évora).


Nota 42: Cf. Livro Dos Oficios de Marco Tullio Ciceram, o qual tornou em linguagem o Ifante D. Pedro, Duque de Coimbra, Dedicatória, p. 3-4: “[Dos] mui boos livros [existentes na biblioteca real] que trautam da philosaphia moral, este antre elles deve seer bem prezado, por que (…) assy que os outros per a mayor parte screvem da theorica, e a tençom deste ha de mostrar a pratica”. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=M6SLhmxI_t0C&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false. Acesso: 20/02/2024.


Nota 43: Como que por extensão, sua tradução do De beneficiis, de Sêneca, deu origem ao seu Trauctado  Da Uirtuosa Benfeiturya; sobre esta obra do Infante D. Pedro, ver: https://maltez.info/aaanetnovabiografia/Autores/infante%20dom%20pedro.htm; acesso: 20/02/2024.


Nota 44: Em viagem oficial pela Europa, o Infante D. Pedro registrou suas observações a propósito da administração senhorial em Portugal, e, como testemunha da renovação do espírito público nas instituições de cultura mais saudáveis, aconselhou medidas pelas quais “a vnjuersidade da uosa terra deuja ser emendada (…) que na dita vnjuersidade ouuese dez ou mais colegios (…) por maneyra dos de vxonia e de paris, e asy creçerião os leterados e as sçiençias” (Livro Dos conselhos de El-Rei D. Duarte (livro da Cartuxa). Lisboa: Imprensa Universitária/Editorial Estampa, 1982 [1426], p. 29).


Nota 45: Idem, p. 28: “nenhũ senhor galardoa ao serujdor per comprymento de sua propia vontade mas por fazer aquelo que a seu seujço pertençe”.


Nota 46: Cf. Livro da virtuosa benfeitoria II, Cap. III: “aprendamos que diz aristotilles (…) a uoontade sguardando o bem comuũ que he fim geeral de todallas obras, moue as outras uirtudes e poderyos da alma (…) E portanto he scripto no primeyro liuro da poliçia, que a uoontade moue os poderios defenssor e deseiador. Os quaaes lhe obedeeçem, nom como seruos em costrangida sobieeçom, mas segundo homeẽs liures em obedeença deseiosa" (Obras dos Príncipes de Avis/Introdução e revisão de M. Lopes de Almeida. Porto: Lello, 1981, p. 567).


Nota 47: Cf. Leal conselheiro, Cap. quinto. Disponível em: https://search.library.wisc.edu/digital/AHFOYD64YMUPRD8L. Acesso: 20/02/2024.


19. Eis que por essa via configurou-se doutrina de caráter ontoteológico na parenética de Antônio Vieira, um membro histórico da Companhia de Jesus celebrado como “imperador da língua portuguesa” [48]. No Sermão da Sexagésima, questionando a si mesmo sobre as razões por que os pregadores fracassavam em seu ofício de converter os ouvintes, Vieira considera a hipótese de lhes faltar um rigoroso conhecimento do valor das palavras:


Dizei-me, pregadores (…) nesses lugares, nesses textos que alegais para prova do que dizeis, é esse o sentido em que Deus os disse? É esse o sentido em que os entendem os Padres da Igreja? É esse o sentido da mesma gramática das palavras? (…) Basta que havemos de trazer as palavras de Deus a que digam o que nós queremos, e não havemos de querer o que elas dizem?! [49]


Nota 48: Em seu livro Mensagem, Fernando Pessoa exalta a presença de Antônio Vieira na cultura de língua portuguesa: “O céu estrela o azul e tem grandeza./Este, que teve a fama e a glória tem,/Imperador da língua portuguesa,/Foi-nos um céu também”.


Nota 49: Cf. Antônio Vieira, Sermão da Sexagésima, Parte IX, §42. Disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2015/11/sermao-da-sexagesima.html


20. Por essa mesma via hermenêutica, Vieira assinala no desenvolvimento político-social da vida humana o surgimento natural do dever como sendo modo do ser: sobrepondo-se ao modo natural do ser como uma vontade autônoma, razão da desigualdade entre as pessoas, o modo do ser em função do ofício ou dever. Assim sendo, formalmente seriam dois os modos do ser: o ser propriamente dito, ou a existência enquanto determinada por natureza segundo uma causalidade eficiente, e o dever-ser ou a existência moral e ética segundo uma causalidade final, quando o fim visado enquanto querido é o que move o indivíduo e o que confere valor à sua ação:


O que aqui pondero é que não diz Cristo aos Apóstolos: Vós sois semelhantes a sal; senão: Vos estis. Vós sois sal [MT 5:13]. Não é necessária Filosofia para saber que um indivíduo não pode ter duas essências. Pois se os Apóstolos eram homens, se eram indivíduos da natureza humana, como lhes diz Cristo que são sal: Vos estis sal? Alta doutrina de estado. Quis-nos ensinar Cristo Senhor nosso, que pelas conveniências do bem comum se hão de transformar os homens, e que hão de deixar de ser o que são por natureza, para serem o que devem ser por obrigação (…) porque o ofício há-se de transformar em natureza, a obrigação há-se de converter em essência (…) Assim o fazia o Batista, que perguntado quem era, respondeu: Ego sum vox: Eu sou uma voz. Calou o nome da pessoa, e disse o nome do ofício. [50]


Nota 50: Cf. Sermão de Santo Antônio, Parte V, §16. Disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2016/01/sermao-de-santo-antonio.html


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21. Depois que o colégio das Artes constituído e administrado pelos humanistas junto à Universidade de Coimbra fora entregue aos jesuítas, Pedro da Fonseca foi dos primeiros convidados para ser lente de Filosofia, quando então, ao longo de seis anos (1555-1561), demonstrou grande eficácia na interpretação de textos de Aristóteles segundo o método introduzido pelos mestres humanistas. Reconhecido como primus inter pares, ele teve seu nome indicado para organizar e editar em Coimbra, sob a forma de textos comentados, todo o curso filosófico do colégio jesuíta das Artes. E quando foi submetido a exame de consciência para assumir tal encargo acadêmico (Examen pro scholasticis), ele respondeu que tinha natural inclinação para as letras, sentindo-se afeiçoado ao estudo da Escritura, e também “de algumas coisas morais”, embora tivesse “pouca experiência deste gênero de estudos”; que, apesar de sofrer com a estafa resultante do acúmulo de atividades escolares dedicadas ao ensino e às disputas, e de considerar medíocre o aproveitamento da própria disponibilidade para o estudo (escolascholaσχολή), sobretudo o de Humanidades, declara, sem hesitação, estar “indiferente [indifferente] para tudo que mandarem e em todo o tempo, até quando ordenarem” [51]. Assim determinado com base na indiferença [52], Fonseca comunicou a seus superiores em Roma — carta ao Padre Nadal, de 14/01/1562 — a necessidade de compra no exterior de muitos livros: além de comentadores de Aristóteles mais recentes e dialéticos humanistas, um autor então controverso como Duns Scotus, e também as obras de filosofia de Cícero e de Sêneca [53]. E uma vez que, em seus comentários à Metafísica de Aristóteles, Fonseca dedicou-se a esclarecer em que sentido os humanistas afirmavam que a vontade é formalmente livre, então parece não haver dúvida de que a sua vivência intelectual, sendo indiferente às próprias sensações e emoções [54], o habilitou para o estudo das “coisas morais” nos estóicos, como Cícero e Sêneca; pois os estoicos usaram o termo grego ἀδιάφορον, que Cícero traduziu pelo termo latino indifferens [55], o qual foi usado por Sêneca para suscitar a questão “Uma vez que tudo se resume a mal ou bem, ou indiferença, a que categoria pertence o agir com sabedoria?” [56]


Nota 51: Archivum Romanum Societatis Iesu, Epistolae Nadal (1546-1562), p. 603, nota de rodapé. Disponível em: https://archive.org/details/epistolaephieron08nada/epistolaephieron08nada/page/603/mode/1up?view=theater. Acesso: 20/02/2024.


Nota 52: Ressaltada por Inácio de Loyola, quando trata do “Princípio e Fundamento de Todos os Exercícios Espirituais”, tal indiferença não é, obviamente, um estado de espírito, senão a própria Regra dos jesuítas: “es menester hazernos indiferentes a todas las cosas criadas, en todo lo que es concedido a la libertad de nuestro libre albedrío, y no le está prohibido”. Cf. Monumenta Ignatiana, Exercitia Spiritualia, 1969 [1548], p. 166. Disponível em: https://babel.hathitrust.org/cgi/pt?id=mdp.39015024561238&view=1up&seq=256. Acesso: 20/02/2024.


Nota 53: Archivum Romanum Societatis Iesu, Epistolae Nadal (1546-1562), p. 599-603. Disponível em: https://archive.org/details/epistolaephieron08nada/epistolaephieron08nada/page/599/mode/1up. Acesso: 20/02/2024.


Nota 54: No contexto humanístico do século XVI, as ideias de liberdade e de ação moral são suscitadas com base no controle da própria vontade. Montaigne, por exemplo, assim se refere às sensações e emoções: “porque nos afetam, mas nem por isso devem monopolizar nossa atenção. Esforço-me por aumentar pelo estudo, e quando estou discorrendo, esse privilégio de insensibilidade assaz pronunciado em mim […] As paixões são tão fáceis de evitar quanto difíceis de moderar […] Quem não consegue alcançar esta nobre impassibilidade estoica, que se refugie em meio à estupidez” (Car c'est raison qu'elles touchent, pourveu qu'elles ne nous possedent. J'ay grand soin d'augmenter par estude, et par discours, ce privilege d'insensibilité, qui est naturellement bien avancé en moy […] Les passions me sont autant aisées à eviter comme elles me sont difficiles à moderer […] Qui ne peut atteindre à cette noble impassibilité Stoicque, qu’il se sauve au giron de cette mienne stupidité populaire). Montaigne, Essais III, chap. 10, §1 e §47.


Nota 55: Cf. Cícero, De finibus bonorum et malorum, III [53]. Cícero discute a questão da liberdade da seguinte maneira: “O que é então a liberdade? (...) somente ao sábio isso diz respeito: nada o obriga a agir contra a própria vontade, seja a dor ou a compulsão” (CICERO, Paradoxa stoicorum, V [34]).


Nota 56: Cf. Sêneca, Epistulae morales ad Lucilium, CXVII, 9: “cum omnia aut mala sint aut bona aut indifferentia, sapere in quo numero sit?”.


22. Mas não obstante o caráter formal da concepção de vontade livre em Fonseca — “Formal”, esclarece ele, “no sentido de que, uma vez preenchidas todas as condições, e sem quaisquer impedimentos, trata-se do poder de agir, e não agir, sendo indiferente” —, vale observarmos que tal indiferença não se confunde absolutamente com apatia; nem se se trata de uma contraposição à espontaneidade, senão de uma certa habilidade adquirida com o uso da razão contra o mecanismo causal das próprias sensações e emoções, do qual frequentemente nos tornamos reféns [57], de maneira que sendo o intelecto a raiz da liberdade (intellectum autem esse libertatis radicem), a possibilidade de escolha entre dois contrários se reveste de extrema utilidade, na medida em que se pode coibir a si mesmo de continuar agindo de um certo modo, ou revogar os próprios atos (aut ab eligendo se cohibeat, aut reuocet):


Por isso, para melhor compreensão do assunto, e do que falam, quando dizem que somente a vontade é formalmente livre, afirmo que o intelecto é de fato a raiz da liberdade, ou (como se diz) radicalmente livre, e esta asserção é evidente (...) Pois nesta potência consiste formalmente a liberdade; formalmente, no sentido de que, uma vez preenchidas todas as condições, e sem quaisquer impedimentos, trata-se do poder de agir, e não agir, sendo indiferente. De fato, o intelecto é a raiz e a origem da liberdade, senão também a luz pela qual a vontade prefere uma coisa a outra, tornando-se capaz, pela escolha, de coibir a si mesmo e de revogar. [58]


Nota 57: Segundo Aristóteles, “das sensações, não consideramos que alguma seja sabedoria (…) Aquele que se baseia na experiência nos parece mais sábio do que os que têm uma sensação qualquer; e aquele que possui uma arte, mais sábio do que os que se baseiam na experiência (…) E, geralmente, o conhecimento mais difícil para os homens é o das coisas mais universais, pois são as mais distantes dos sentidos (…) E a ciência mais digna de mandar entre as ciências, e superior à subordinada, a que conhece o fim pelo qual se deve fazer cada coisa (…) É, pois, evidente que não a buscamos por nenhuma outra utilidade, senão que, assim como chamamos homem livre ao que é para si mesmo e não para outro, assim consideramos a esta como a única ciência livre” (ARISTÓTELES, Metafísica, 981b-982b; p. 8-15).


Nota 58: Cf. Pedro da Fonseca, Comment. T. III, Lib. IX, Cap. II, Quaest. II: “intellectum autem esse libertatis radicem, seu (ut loquuntur) esse radicaliter liberum, haec enim assertio ex dictis manifesta est. Namque in ea potentia est libertas formaliter, in qua formaliter, sive complete est potestas ad agendum, et non agendum indifferens, positis nimirum omnibus ad agendum, praerequisitis, et sublatis quibuscunque impedimentis. Ea vero potentia est libertatis radix, et origo, que lucem, et quasi facem uoluntati praefert, ut ex pluribus unum eligat aut ab eligendo se cohibeat, aut revocet”; disponível em: https://www.conimbricenses.org/commentariorum-petri-fonsecae-societatis-iesu-in-libros-metaphysicorum-aristotelis/. Acesso: 20/02/2024.


23. Porque se coube a Descartes — que nunca deixou de reconhecer sua dívida em relação aos jesuítas em La Flèche [59] — definir e consolidar o modo do ser moderno como antítese do antigo, isto se deve à sua postulação doutrinária, nos Princípios da filosofia, de que nada é mais evidente e perfeito do que a consciência da liberdade e da indiferença em nós, sendo tal evidência de liberdade e indiferença a consciência de si abstendo-se de ver e sentir de um certo modo quando não há razões suficientes para tanto [60].


Nota 59: Em carta ao Padre Mersenne (30/09/1640), Descartes demonstrou o seu respeito aos “Conimbres”, ao manifestar a intenção de submeter previamente o texto das suas Meditações metafísicas (“mon petit traité de Metaphysique”) à crítica dos teólogos jesuítas, sobretudo porque ele acreditava que, passando por esse exame, ficaria em condições de neutralizar as “cavilações dos ignorantes que gostam de contradizer”. Cf. DESCARTES, Correspondance; edição Adam-Tannery, III, p. 183-185. Disponível em: https://ia800208.us.archive.org/23/items/uvresdedescartes03desc/uvresdedescartes03desc.pdf. Acesso: 20/02/2024.


Nota 60: Cf. Descartes, Principia philosophiae, pars prima, XXXIX e XLI (ed. Adam-Tannery, p. 20): “nihilominus enim, hanc in nobis libertatem esse experiebamur, ut possemus ab iis credendis abstinere, quae non plane certa erant & explorata (…) libertatis autem & indifferentiae quae in nobis est, nos ita conscios esse, ut nihil sit, quod evidentius & perfectius comprehendamus”; disponível em: http://philosophyfaculty.ucsd.edu/faculty/ctolley/texts/descartes.html. Acesso: 20/02/2024.


24. Com o aristotelismo de Pedro da Fonseca configurou-se na filosofia universitária da cultura de língua portuguesa um antagonismo antitético entre os mestres “modernos” — porquanto imbuídos do espírito humanístico dos letrados quanto à liberdade de se representar um e o mesmo sentido universal de maneiras diferentes — e os “antigos”, cujo aristotelismo dogmático, então debitado na conta de Aristóteles, passou a ser considerado servil e ridículo, como posteriormente registraram Arnauld e Nicole em Port-Royal [61].


Nota 61: A propósito da pedagogia estéril cujo foco é a posse do conhecimento com base na memória, Arnauld e Nicole assinalaram o mau uso das expressões mnemônicas no ensino da lógica aristotélica: “como foram criadas apenas para aliviar a memória, não se queira promover o seu uso corrente, de modo a dizer, por exemplo, que se vai agora usar um argumento em bocardo, ou em felapton, o que, de fato, seria bastante ridículo” (ARNAULD & NICOLE, A lógica, ou A arte de pensar, Primeiro Discurso).


3


25. Após a transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, pôs-se em prática, em 1816, o plano de uma Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios mediante a contratação em Paris de um grupo inteiro de artistas e artesãos, cujo encargo ficou historicamente conhecido como Missão Artística Francesa, não só para formar mão de obra qualificada, como também para promover o conhecimento das artes e das ciências necessárias ao desenvolvimento da vida civilizada [62]. Tanto pela quantidade quanto pela qualidade, o desempenho dos mestres franceses no Rio de Janeiro, culminando com a instituição da Academia Imperial de Belas Artes dez anos depois, sem dúvida foi determinante para formar uma geração de intelectuais brasileiros empenhados no projeto de fundar uma cultura nacional independente [63].


Nota 62: Cf. Decreto de 12/08/1816, que cria a Escola Real das Ciências, Artes e Ofícios e concede pensões aos mestres contratados em Paris. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/academia_mcw.htm Acesso: 20/02/2024.


Nota 63: Na II Exposição de Belas Artes organizada no Rio de Janeiro por Jean Baptiste Debret, em1830, Domingos José Gonçalves de Magalhães marcou sua presença como aluno amador junto a seu amigo e discípulo de Debret, Manuel de Araújo Porto-Alegre, o qual acompanhou seu mestre, em 1831, no retorno a Paris, onde, dois anos mais tarde, recebeu Magalhães e lhe facultou a inserção no meio acadêmico parisiense. Juntamente com Araújo Porto Alegre, Francisco de Sales Torres Homem e Eugène de Monglave, Magalhães fundou a Niterói, Revista Brasiliense (Paris, 1836), verdadeiro ícone da emancipação e modernização cultural brasileira. Cf. L. A. Cerqueira: Gonçalves de Magalhães como Fundador da Filosofia Brasileira, §25-§32. Disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com.br/2009/04/goncalves-de-magalhaes-como-fundador-da.html


26. Entretanto, os primeiros passos nesta direção nos remetem à política portuguesa de perfil iluminista liderada pelo conde de Linhares, Rodrigo de Sousa Coutinho [64]; e a António de Araújo e Azevedo, o primeiro Conde da Barca, em torno do qual se constituiu na corte do Rio de Janeiro uma República das Letras, isto é, uma sociedade de letrados, que deu origem a dois acontecimentos culturais no ano de 1813: por um lado, sem patrocínio oficial, o brasileiro Manoel Ferreira de Araújo Guimarães fundou o jornal O Patriota, cuja proposta era manter o seu leitor antenado na moderna cultura europeia, ressaltando ser “uma verdade, conhecida ainda pelos menos instruídos, que sem a prodigiosa invenção das letras, haveriam sido muito lentos os progressos nas ciências, e nas artes” [65]; por outro lado, o português Silvestre Pinheiro Ferreira ofereceu ao público um curso filosófico a longo prazo cuja utilidade se baseava na moderna concepção social e política de que todo cidadão, “qualquer que seja o seu estado e profissão, precisa de saber discorrer com acerto e falar com correcção (…) mas [precisa de saber] também a filosofia da ciência, que constitui a sua particular profissão. E muitos há, que necessitam de saber enunciar com elegância, com graça e energia, e talvez com sublime estilo, verdades que lhes cumpre persuadir àqueles, que os escutam” [66].


Nota 64: Sobre o perfil da política iluminista de Rodrigo de Sousa Coutinho no Brasil, ver Sérgio Hamilton da Silva Barra, A Impressão Régia do Rio de Janeiro e a Colonização dos Sertões na Construção do Novo Império Português na América (1808-1822). Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/topoi/v16n31/2237-101X-topoi-16-31-00442.pdf. Acesso: 20/02/2024.


Nota 65: Cf. O Patriota, Número 1, Introdução. Disponível em: http://memoria.bn.br/DOCREADER/DOCREADER.ASPX?BIB=700177. Acesso: 20/02/2024. Sobre o perfil iluminista de Manoel Ferreira, ver “Manoel Ferreira de Araújo Guimarães, a Academia Real Militar do Rio de Janeiro e a definição de um gênero científico no Brasil em inícios do século XIX”, de Luís Miguel Carolino. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882012000200014. Acesso: 20/02/2024.


Nota 66: Cf. Silvestre Pinheiro Ferreira, Prelecções filosóficas sobre a teórica do discurso e da linguagem, a estética, a diceósina e a cosmologia, publicadas em fascículos (FERREIRA, 1813, p. 1; 1ª reed., São Paulo, USP/Grijalbo, 1970; 2ª reed., Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1996). Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasraras/or1379817/or1379817.pdf. Acesso: 20/02/2024.


27. Observe-se nas duas iniciativas, como pressuposto, o senso humanístico do valor das palavras, que marcou as Instituições dialécticas de Pedro da Fonseca [67], e se consolidou posteriormente na Lógica de Luís António Verney, o qual ensina que “as palavras são sinais arbitrários das coisas para cuja significação foram inventadas”, mas acrescenta que “são também ‘sinais arbitrários’ das percepções correspondentes às próprias coisas” [68].


Nota 67: Nesse sentido, diríamos que retornar a Fonseca é progredir: “Na autoridade humana requerem-se ordinariamente duas coisas: conhecimento das coisas (que se contém na ciência ou na experiência dessas coisas) e virtude. Aquele, para saber o que se diz; esta, para querer dizer o que se sabe” (FONSECA, 1564, Lib. VII, Cap. 35); disponível em: https://www.conimbricenses.org/institutionum-dialecticarum/. Acesso: 20/02/2024.


Nota 68: Cf. Luís António Verney, Lógica (De Re Logica, Ad Vsvm Lvsitanorvm Adolescentivm Libri Sex), 2010 [1751], p. 201-203. Disponível em: https://digitalis-dsp.uc.pt/jspui/bitstream/10316.2/2682/9/LOGICA(2010).pdf?ln=pt-pt. Acesso: 20/02/2024. Vale observar que Verney, além de denunciar a decadência da instrução pública, concebeu um curso completo de Filosofia (Metafísica, Lógica e Física) “para uso dos jovens portugueses”.


28. O Patriota é o primeiro periódico no Brasil a divulgar o moderno ideal científico de conhecimento como objeto de interesse público [69]; também responde mediante seu nome pela divulgação de um uso novo do termo pátria e seus cognatos em língua portuguesa [70], tanto no sentido político quanto moral e ético, conforme o verbete Patrie na Enciclopédia de Diderot e D’Alembert [71]. Na primeira edição d’O Patriota, antes mesmo de publicar o primeiro fascículo de suas Preleções filosóficas, Silvestre Pinheiro Ferreira colaborou com um pequeno artigo analítico sobre o conceito de sílaba, esclarecendo que se tratava de resposta a uma “questão gramatical que se moveu em uma Sociedade Literária, em que eu me achava” [72]; ainda na quarta edição, ele colaborou com artigo analítico mais longo subordinado ao título de Gramática Filosófica [73].


Nota 69: “Não havendo recebido notícias modernas da Europa (…) tenho todavia a satisfação de ocupar-me neste de um objeto muito interessante (…) o aumento das luzes (…) A Academia Real Militar fez a sua pública abertura (…) abriram-se pela primeira vez as aulas de Astronomia, de Geodésia, de Tática, de Física, e brevemente a de Química (…) E se a moral se apura, à medida que se propagam os conhecimentos, e daquela depende a felicidade pública, eu estou certo que nenhum homem sensato se recusará ao fiel tributo de veneração (…) A este régio estabelecimento, tenho a satisfação de ajuntar o utilíssimo Plano de Preleções Filosóficas de um homem de conhecido saber, e da mais bem merecida reputação (…) Além da manifesta necessidade das matérias, que se vão explicar, brilha no Plano que se segue aquele espírito de método” (O Patriota, nº 4, abril de 1813, p. 89-93). Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/opatriota/patriota_1813_1_n4.pdf . Acesso: 20/02/2024.


Nota 70: Até então o Dicionário da Língua Portuguesa de Rafael Bluteau (reedição do Vocabulário Português e Latino revisto e aumentado pelo brasileiro Antonio de Moraes Silva; 1789, Tomo II, p. 170) registrava os seguintes sentidos: “a terra donde alguém é natural; A pátria celeste, o Céu”. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/view/?45000008423&bbm/5413%252525252523page/172/mode/1up#page/172/mode/2up. Acesso: 20/02/2024.


Nota 71: Em sua primeira edição, L’Encyclopédie (1751, Tome 12, p. 178-180) registra o seguinte: “o retórico menos lógico, o geógrafo que lida apenas com a posição dos lugares e o lexicógrafo vulgar tomam a pátria como o lugar de nascimento, qualquer que seja; mas o filósofo sabe que essa palavra vem do latim pater, que representa pai e filhos e, consequentemente, que ela exprime o sentido que queremos dizer quando falamos de família, sociedade e estado livre, do qual somos membros e cujas leis asseguram nossas liberdades e nossa felicidade (…) enfim, o espírito moderno mais bem instruído nos revelou o sentido dessa palavra, fixando com tanto gosto e verdade o significado desse termo, sua natureza e a ideia com a qual devemos ocupar-nos…” Disponível em: https://fr.wikisource.org/wiki/L%E2%80%99Encyclop%C3%A9die/1re_%C3%A9dition/PATRIE. Acesso: 20/02/2024.


Nota 72: Cf. O Patriota, nº 1, janeiro de 1813, p. 93-95. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/opatriota/patriota_1813_1_n1.pdf. Acesso: 20/02/2024.


Nota 73: Cf. O Patriota, nº 4, abril de 1813, p. 21-29. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/opatriota/patriota_1813_1_n4.pdf. Acesso: 20/02/2024; nesta mesma edição, p. 92-93, é anunciado em detalhes o futuro lançamento das Preleções filosóficas. O registro do lançamento, em agosto do mesmo ano, saiu na edição de setembro, p. 79. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/opatriota/patriota_1813_2_n3.pdf. Acesso: 20/02/2024.


29. Ao empreender seu curso filosófico pelo viés da linguagem, e considerando-se a inexistência de apoio bibliográfico disponível, não chega a surpreender em Silvestre Pinheiro Ferreira, nem a sua decisão de traduzir para a língua portuguesa as Categorias de Aristóteles [74], nem a sua manifesta admiração por Aristóteles, se considerarmos o antiaristotelismo dos gramáticos e lógicos de Port-Royal [75].


Nota 74: Cf. Categorias de Aristóteles, traduzidas do grego, e ordenadas conforme a um novo plano, por Silvestre Pinheiro Ferreira, para uso das Preleções Filosóficas do mesmo tradutor. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1814. Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasraras/or1379818/or1379818.pdf. Acesso: 20/02/2024. Observe-se que, desde o final do século XVI, o texto das Categorias mais largamente utilizado no ensino filosófico foi a edição francesa bilíngue grego/latim, em 02 volumes, de Isaac Casaubon (Lyon, 1590).


Nota 75: Neste aspecto, Silvestre Pinheiro Ferreira se mostra em perfeita sintonia com a lógica de Port-Royal: “Não foi, portanto, para rebaixar Aristóteles, mas antes, pelo contrário, para o honrar (…) que assinalamos [definições defeituosas e maus argumentos] em seus livros (…) esses exemplos têm até pouca importância e não afetam o âmago de sua filosofia, a qual não temos qualquer intenção de atacar” (ARNAULD & NICOLE, A lógica, ou A arte de pensar, Segundo Discurso).


30. Nesse contexto, o valor filosófico do seu curso concebido em língua portuguesa — certamente a primeira leitura da filosofia moderna apresentada no Brasil — se torna mais relevante em relação à teoria das ideias de Luís António Verney, a despeito de que em suas Preleções filosóficas sobressaia a defesa do sensualismo de Condillac. Pois, ao tratar de ideias e sensações, a sua concepção de que “toda e qualquer ideia que tenhamos, ausentes os objectos, a temos tido quando nos foram presentes alguns, ou algum deles” [76], aponta para Condillac e remete a Locke, mas passa por Verney, segundo o qual: “As ideias das coisas (…) são aquilo que, enquanto presente ao nosso espírito, leva a perceber ou a sentir algo distinto do próprio espírito” [77].


Nota 76: Cf. Prelecções filosóficas, verbete ‘Sensação’, no Índice, p. 70. Disponível em: https://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasraras/or1379817/or1379817.pdf. Acesso: 20/02/2024.


Nota 77: Segundo Amândio Coxito, quanto às doutrinas semânticas de Verney e Locke sobre a relação entre sensações e ideias, “existe uma coincidência dos pontos de vista dos dois autores, por ambos concordarem em que os sinais da linguagem não significam algo independentemente das ideias dos seus utentes (…) aquilo que eles significam ou dão a conhecer é função da experiência de cada sujeito” (COXITO, A Crítica do Inatismo Segundo Verney, disponível em: https://www.uc.pt/fluc/dfci/publicacoes/critica_inatismo).Acesso: 20/02/2024. Cf. L. A. Verney, De re physica ad usum lusitanorum adolescentium, vol. 4, p. 448; disponível em: https://permalinkbnd.bnportugal.gov.pt/viewer/92739/?medianame=sa-2283-v_0000_capa-capa_t24-C-R0150_&o=volume?&medianame=sa-2284-v_0000_capa-capa_t24-C-R0150_&viewer=picture&o=volume#page=462&viewer=picture&o=volume&n=0&q=. Acesso: 20/02/2024.


31. Contra essa vertente filosófica em nosso meio intelectual, Gonçalves de Magalhães propõe o espiritualismo na linha de Biran e Cousin então hegemônico na filosofia universitária francesa [78], valendo-se para tanto dos textos de naturalistas como Flourens [79], mas sobretudo de uma interpretação alegadamente nem antiga nem moderna da história da filosofia [80]: no plano teórico, ele admite o princípio defendido pelos filósofos modernos, de que o conhecimento das coisas depende da constituição de nosso espírito; mas no plano da ação, do ponto de vista moral e ético, ele não admite prejuízo algum de sua vivência da liberdade como um absoluto, sendo indiferente às próprias sensações e emoções.


Nota 78: Cf. Bergson, A Filosofia Francesa, Trans/Form/Ação, São Paulo, 29(2), 2006, p. 264-265. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/trans/v29n2/v29n2a18.pdf. Acesso: 20/02/2024. Cf. também R. Verdenal, O espiritualismo francês de Maine de Biran a Hamelin. In: CHATELET, F. (org.). História da filosofia – ideias, doutrinas, vol. 6. Rio de Janeiro: Zahar, 1974, p. 35-60.


Nota 79: Cf. “M. Jean Pierre (An extraordinary scientist of his time”, in: Journal of neurology, neurosurgery & psychiatry. Consulta em 07/09/2014: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2117745. Acesso: 20/02/2024.


Nota 80: Cf. MAGALHÃES, Fatos do espírito humano, VIII, §25: “Infelizmente em favor do que digo não posso citar a opinião de nenhum filósofo antigo, ou moderno”. Disponível em: https://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2013/02/fatos-do-espirito-humano_9.html


32. Assim, de maneira ambígua, Magalhães distingue duas espécies de evidência, sendo uma de caráter imanente e de valor relativo, isto é, a das verdades da ciência; outra a das verdades filosóficas, de caráter transcendente e de valor absoluto, a exemplo da evidência que se tem de si mesmo como sendo sujeito de conhecimento:


Há duas espécies de abstrações para o espírito, uma das coisas puramente fenomenais e relativas, com que formamos as ideias gerais coletivas, que não correspondem a nenhuma realidade na natureza, fora dos objetos donde as abstraímos, como a ideia geral de árvore, ou de animal.

A segunda espécie de abstração consiste simplesmente em considerar em separado os elementos necessários que concorrem na percepção externa, e que são para nós verdades absolutas e universais, não formadas por uma coleção de atributos relativos. [81]


Nota 81: Cf. MAGALHÃES, Fatos do espírito humano, XII. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/view/?45000008694&bbm/4164#page/300/mode/1up. Acesso: 20/02/2024.


33. Mas afinal, como conciliar as duas espécies de evidência na formação do espírito público, se praticamente ao longo de três séculos prevalecera na política pública de ensino introduzida pelo colonizador o valor absoluto da consciência de si instruída na fé? 


Conclusão


34. Em 1878, Sílvio Romero argumentava:

Sabe-se agora que não somos um povo de alta cultura, não porque nos faltassem frases, que nos sobram; mas por faltar-nos a ciência (...) Ouviram dizer que os pátrios escritores são uns grandes esfaimados que se nutrem continuamente dos produtos do espírito europeu, e decidiram, desde logo, ignorar quantas influências tenham-se encaminhado para desenhar-lhes o perfil. Ora, um grande sistema de imitações tem também a sua lei de progredir… [82]


Nota 82: Cf. Sílvio Romero, A Poesia de Hoje, Prólogo de Cantos do fim do século, §39, §41 e §42. Disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com.br/2010/04/poesia-de-hoje.html. Acesso: 21/06/2020.


35. Desde então, a ideia de uma descolonização do espírito brasileiro restringiu-se ao sentido historicista do modo do ser moderno, tornando-se a recepção de ideias novas um fator obsessivo de crescente descaso pelo passado. Eis que assim se perdeu o sentido de transformação ontológica em Vieira relativamente aos modos do ser, porque se perdeu o sentido do tempo interno à consciência. Esse caráter historicista da modernização voltada exclusivamente para o futuro foi o ponto de partida para que posteriormente se consolidasse, no âmbito da filosofia universitária, um absoluto descaso em relação ao perfil humanístico do aristotelismo de Pedro da Fonseca ou de Manuel de Góis:

Não é no pensamento português que vamos encontrar o significado das descobertas para a orientação e o progresso do homem, mas em Montaigne, em Bacon, em Bruno, em Descartes […] os portugueses (homens práticos) se enterravam na boçalidade fradesca e na asfixia jesuítica. [83]


Nota 83: Cf. Antonio Candido, Notas de Crítica Literária – A filosofia no Brasil, comentário ao livro de João Cruz Costa. Diário de São Paulo, em 22/11/1945 (CANDIDO, Textos de intervenção, p. 263).


36. Nesse contexto tivemos a crise estética desencadeada pelo Movimento Modernista em São Paulo. Para o efeito de uma depuração da sensibilidade quanto ao modo de sentir e transformar emoções em ação, modernistas como Mário de Andrade e Oswald de Andrade exaltaram o corpo e as sensações, a experiência do cotidiano social e a vivência do senso comum contra o que eles consideravam princípios e valores idealistas, ou ainda, contra a formação moralista e a cultura livresca dos letrados do século XIX.


37. Ainda hoje se explica essa crise estética tão somente como um efeito da recepção das tendências artísticas lançadas pelas vanguardas europeias da época, a exemplo do futurismo. Sem prejuízo desse fato, e no intuito de compreendermos o nosso desenvolvimento mental e emocional, não vejo por que pensar a crise estética desencadeada pelos modernistas da década de 1920 sem levar em conta a tematização precursora deTobias Barreto, não só pela sua crítica da sensibilidade suscitada nos Fatos do espírito humano de Gonçalves de Magalhães, mas sobretudo pelas ideias que defendeu a partir de autores alemães hoje reconhecidos como neurocientistas (ver nota 10 acima); ideias que ascenderam à superior dimensão de teses filosóficas n’O mundo interior de Farias Brito.


38. E ainda para compreendermos o nosso desenvolvimento mental e emocional, já agora considerando a presença feminista de uma Tarsila do Amaral ou de uma Pagu no âmbito do Modernismo, também não vejo por que desdenharmos as ideias de Tobias Barreto sobre a psicologia da mulher, quando ele se opõe a um famoso erudito de língua alemã então contrário ao feminismo de Fanny Lewald.


39. Quando o Estado de São Paulo decidiu fundar a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, em 1934, entendeu-se que o caminho da solução definitiva para a formação de uma cultura propriamente brasileira, conforme um padrão universal de rigor no método de conhecimento, seria começar do zero, isto é, contratando para a inauguração, instalação ou regência de cursos, pelo tempo que fosse necessário, professores estrangeiros de notória competência. Assim, como que à semelhança da Missão Francesa de 1816, foram contratados principalmente professores universitários franceses, sendo confiada a cátedra de Filosofia exclusivamente aos franceses. E tal aspiração, de que diretrizes metodológicas seriam suficientes para que enfim pudéssemos registrar nossa certidão de nascimento da filosofia universitária no Brasil, fez com que nos dobrássemos em nossa ousadia de fazer uso de ideias filosóficas assim como os letrados humanistas ensinaram a fazer uso das palavras para dar-lhes um novo sentido:


Se, na Universidade de São Paulo, aprendemos com Jean Maugüé a considerar a filosofia uma atividade vital, inseparável da existência e dos problemas da vida, foi com Cruz Costa que aprendemos a dar um passo a mais e sentir a necessidade de filosofar sobre o Brasil (…) O livro do prof. Cruz Costa é estimulante (...) A sua análise de Farias Brito é simplesmente magistral, e em mais de um passo, como neste, põe no devido lugar alguns devaneios dos filosofantes cá da terra. [84]


Nota 84: Idem, p. 264-265.


40. Antes que aparecesse Farias Brito no horizonte aberto pela antítese entre Gonçalves de Magalhães e Tobias Barreto, sobre este já dissera Sílvio Romero que ele ia a Kant, não para pedir-lhe ideias, senão para tomar-lhe o espírito.


41. Mas não tenho dúvida sobre a dificuldade de avaliar corretamente o valor e o significado dos textos de nossos filosofantes do século XIX. Entretanto, para além da capacidade de estudar Filosofia com base em metodologia científica, que aprendemos com os franceses, nos tornamos vítimas de uma perversa propensão a julgar ideias segundo a novidade, conforme uma observação de Maugüé relembrada por Antônio Candido e ressaltada por Paulo Arantes:


[...] nossa ‘tara gentil’, como se referiu uma vez Antônio Candido à patologia amena de nossa malformação: ‘é um prazer para quem chega ao Brasil observar como aqui são acolhidas as ideias novas, como são incorporadas com um arrojo que não existe nos velhos países’ [dizia Maugüé]. Em contrapartida, [Maugüé] procurava nos mostrar como um intelectual europeu, sem ser necessariamente conservador, tende a procurar em toda ideia nova o que os clássicos já haviam pressentido. [85]


Nota 85: Cf. Paulo Arantes, Um departamento francês de ultramar. Estudos sobre a formação da cultura filosófica uspiana, 1994, p. 82-83. Disponível em: https://sentimentodadialetica.org/dialetica/catalog/view/101/67/182. Acesso: 20/02/2024.

FIM