sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Avulsos & Dispersos

Tobias Barreto


Fonte: BARRETO, Tobias. Vários escritos. Obras completas (edição do Estado de Sergipe). Rio de Janeiro: Pongetti, 1926.





1. A sociedade é um sistema de forças que lutam contra a luta pela existência.


2. A sociedade é um sistema de beijos e mordeduras recíprocas.


3. A vida é uma leitura (Dias e Noites); ler é lutar.


4. O progresso consiste nesse processo de acomodação e desacomodação das coisas ao tempo.


5. O incompreensível supõe o incompreendente.


6. Virá um tempo em que comer será uma função exercida às ocultas.


7. O crime, como diz o italiano Francisco de Sanctis, é um ato inocente; mas é um ato inocente perante a natureza. Ora, natureza é alguma coisa de grande que tem em si alguma coisa de pequeno, que é homem. Para a natureza, a morte, ou seja produzida pela tísica, ou pelo beribéri, ou pelo punhal do assassino, ou pelo ato espontâneo do suicida, é sempre o alargamento da vida.


8. Os brasileiros fazem do banquete um parlamento e do parlamento um banquete.


9. O Sr. Saldanha Marinho, que nunca se elevou ao sublime do talento, às vezes tem se elevado ao sublime do caráter: mas do caráter a S. Cristóvão [referia-se ao Imperador] há um salto de gato.


10. O espírito humano pode ser considerado como unidade ideal e totalidade real. No primeiro caso, só existe subjetivamente; no segundo ele é, ao mesmo tempo, um fator e um produto. Em cada momento da história, ele vale o resultado de todos os trabalhos e conquistas anteriores. Em cada momento da história, está, por conseguinte, sempre armado de novas forças para invadir o futuro.


11. No meio termo nem sempre consiste a virtude, mas quase sempre está a verdade.


12. A lógica que às vezes vai além do pensamento, não vai além da realidade.


13. A verdade sintética é um caso especial do erro.


14. Há alguma coisa pior do que ser moço, é ser velho; mas também há alguma coisa pior do que ser velho, é ser moço…


15. A razão é uma prostituta: tem nos lábios ciência e no coração ignorância.


16. A revolução francesa foi um desideratum, um tentâmen de corrigenda à história.


17. A soberania é um fato, não é um direito.


18. O problema capital da civilização é esforçar-se por harmonizar a cabeça e o coração. Presentemente, em todos, os tempos, todo o cisco que se tira da cabeça se lança sobre o coração; daí a frase tantas vezes repetida: bonito talento, mas péssimo caráter.


19. O direito é a nobilitação do egoísmo. Distingue-se da moral em ser heteronômico, ao passo que a moral é autonômica; ou melhor, o direito é heteromáquico e moral é automáquica; o primeiro é uma luta de muitos; a segunda é a luta do indivíduo consigo mesmo.


20. Os talentos que não brilham com luz própria, somente são tais porque brilham pela ignorância.


21. Há duas categorias de grandes homens: a dos que são reconhecidos pela sociedade, isto é, dos que ela assimila a si mesma, e a dos que são um protesto contra a sociedade. Como exemplo dos últimos, está Bismarck, que é um protesto contra a sociedade alemã: — ele querendo sempre, ela não querendo; mas ele sempre afirmando-se, sempre pondo em prática a sua vontade.


22. O direito é forma da liberdade. É um processo de eliminação das irregularidades sociais.


23. O homem é um ser histórico, vive na história, e nela se desenvolve. O Estado, que é uma sociedade de homens organizada, também se explica pela história. Desde que começa a história vê-se os homens organizados no Estado; para lá desse período existe a pré-história; e por conseguinte faltam os dados para determinar qual tenha sido a origem da sociedade. Tudo quanto se pôde dizer pertence à metafísica. Querer explicar a origem do Estado pelo instinto da sociabilidade é confundir o fato com o possível. Não há tal instinto de sociabilidade, pelo fato de haver sociedade; da mesma sorte que não há instinto da vestibilidade, porque o homem se veste, nem o da fumalidade, porque ele fuma. O que existe no homem é a faculdade de desenvolver-se. O homem, a princípio, viu-se em luta com a natureza e com o mesmo homem. Percebendo que o ímpeto da luta lhe seria funesto, pactuou com seu semelhante, preferiu a paz (pacisci). Mas esse fato não foi positivo, como pensa Rousseau; foi inconsciente, fruto de necessidade de conciliar-se os interesses que se chocavam. Pode se conceber o homem não vivendo em sociedade, como vivem alguns animais; porém, como há no homem uma faculdade de desenvolver-se, que não existe nos outros animais, ele, em virtude dela, procurou melhor meio de viver. É pois o Estado a mais alta expressão do modus vivendi. O Estado é ao mesmo tempo causa e efeito do desenvolvimento humano. O fim do Estado pode ser condensado na seguinte fórmula: ordem e cultura. A ordem é o fim rudimentar, primitivo do Estado e condição da realização de fim mais elevado — a cultura. A ordem consiste na aplicação pacífica do direito como base da proteção das pessoas e da propriedade. O fim do Estado não é uma coisa que esteja distante e adiante de nós; ele se realiza a cada momento na sociedade e a cada momento e para ser realizado. É um fim sempre em ato. Assim é que sempre que o Estado elimina as irregularidades da vida social, a coexistência tranquila dos cidadãos é um fato, e nisto é que consiste a proteção das pessoas e da propriedade. É o que vemos a cada momento. O criminoso que ataca o direito de alguém ofende a sociedade inteira, põe-se em conflito com a ordem social, e é punido. Eis aí a ordem se realizando. A ordem é ainda a vida garantida, a honra protegida dos atentados da calúnia e da injúria, a propriedade isenta de ser lesada pelo furto, pelo esbulho. Para manutenção da ordem o Estado opera como força organizada, aplicando a pena que também é a coação organizada.


24. As evoluções são quatro: geográfica (imigração); morfológica (desenvolvimento de forma, de estrutura); fisiológica (desenvolvimento de funções); e psicológica (desenvolvimento de atividade).


25. Ciência é o que se sabe, filosofia o que se procura saber. Uma não é mais do que um tesouro adquirido, a outra consiste na indagação, na ânsia de desvendar o enigma das coisas.


26. As condições existenciais da sociedade são extrajurídicas, semijurídicas e propriamente jurídicas. As primeiras são aquelas em que não entra coação alguma, porém nas segundas já entra um pouco de coação. As últimas são as exigências sociais de tal natureza, que não sendo cumpridas, a sociedade  desaparece. Tais são o respeito à honra, à propriedade, etc… O direito só tem que ver com as últimas e em parte com as segundas.


27. O direito é intenso e extenso, sendo que a intensidade ou intensividade está na força, no valor do direito mesmo, ao passo que a extensidade é puramente geométrica ou geográfica. Assim o direito é nacional, provincial e municipal: eis aí caracteres extensos do direito que provam a sua intensidade; pois que em caso de conflito vencerá aquele que tiver por sujeito uma coletividade mais ampla. O direito municipal, por exemplo, em luta com o nacional será por este esmagado, e bem assim o direito municipal em luta com o provincial. São as seguintes as antíteses do direito:


(1a) o direito é oriental e ocidental, isto é, o direito como o compreenderam os povos da Ásia e os do Ocidente;


(2a) antítese etimológica: o direito ariano, o semítico, o mongólico representado pelos chins, o povo mais civilizado da raça; e, mais restritamente, o direito francês, o alemão, o brasileiro, etc...


(3a) o direito in fieri e o direito factum, o que se faz e o que passa, ou melhor, o direito novo e o direito velho, de que é exemplo, quanto ao primeiro, a questão do dia, o abolicionismo — direito que se forma, que está lutando para garantir-se, o direito da liberdade dos escravos —, e a propriedade escrava, direito já feito, sobre o qual a lei dispensa plena proteção;


(4a) a antítese da escola: direito natural e o direito positivo, sendo imprópria, senão errônea, a primeira denominação, pois que todo direito é positivo;


(5a) finalmente, a antítese de Bluntschli: direito humano e direito nacional. Mas eu não admito o direito humano, pois que sendo o direito o conjunto de condições existenciais e evolucionais da sociedade coativamente asseguradas, vê-se que aquele direito é impossível, por não existir coação. Quem coage aí? A humanidade? Não; porque ela mesma é sujeito de direito; e a ideia de coação traz como associado a de um organismo desenvolvendo-se aperfeiçoando-se, de uma sociedade organizada. A humanidade não está neste caso, nem podemos afirmar quando ela será capaz de um direito humano. Há, quando muito, o que mesmo Bluntschli chama uma disposição de direito.


28. Parece que cada povo deve ter sua liberdade política, isto é, que cada um deve entendê-la a seu modo.


29. Qualquer obra deve conter, para ser apreciada, ou fatos novos, ou novamente descobertos, ou princípios novos ou novas observações de princípios já conhecidos; brilhando em todos estes pontoa a verdade.


30. O homem que como Castellar sempre trata de colorir as suas convicções com cores imaginativas não pode tomá-las ao sério. Isto é ao menos uma questão psicológica.


31. A Alemanha ensina a pensar e a França a escrever.


32. A lei da ideia perseguida e propagada é ainda um resto da influência do milagre.


33. Os sondadores da origem do clima são como homens que se esforçassem para se lembrar da hora em que nasceram.


34. Se a Igreja ainda luta com a ciência, é que esta não chegou a uma altura bastante para impor silêncio à sua adversária.


35. O desgosto da vida não é mais do que a incapacidade de criar um ideal.


36. Como a ave faz o ninho em que se abriga, no seio de um espinho, assim pode a alma acautelar-se e dormir tranquila das misérias da vida dentro de seu ideal.


37. Um artigo intitulado “A constituição do dique encarada como produto intelectual”.


38. É bom que o clero católico não tenha convicções… Onde iríamos parar com homens que estivessem convencidos, realmente convencidos de que C. é Deus, de que o Papa é infalível, de que há inferno e purgatório de dor.


39. Os escritores que não têm ideias próprias são como os que não têm capital e tomam emprestado a um para negociar com outros.


40. Renan é um macaco da Alemanha, porém da mesma maneira que o ouro é o macaco da luz.


41. O Estado quer saber se os meninos aprendem… E por que, antes, não procura saber se eles comem?


42. No mundo moral também é certo que a lei, isto é, a ideia não tem efeito retroativo.


43. A Igreja de que somos fiéis é uma digna irmã do Estado de que somos súditos, só com uma diferença: a Igreja nos garante bem-aventurança por menos dinheiro que o Estado nos garante a justiça.


44. A razão é tão incompetente para corrigir as ilusões do coração como os ouvidos para corrigir as ilusões do olfato.


45. O Brasil se acha à discrição de três personagens: Deus, o diabo e o Imperador.


46. Eu não sou bastante forte para fazer à minha imagem e semelhança a sociedade em que vivo; mas esta, por sua vez, não é também bastante forte para me levar em sua corrente. Daí uma certa irredutibilidade entre nós.


47. Quais são as formas em que se move o espírito brasileiro, isto é, em que ele se manifesta? Política! Pressão!


48. Um dia virá em que a escola dar-nos-á mães e esposas republicanas e reanimará o vigor dos costumes sem os quais não pode existir um povo verdadeiramente grande.


FIM


Nenhum comentário: